domingo, 1 de novembro de 2020

Jane Eyre, de Charlotte Brontë - resenha crítica

 

Charlotte Brontë


            Jane Eyre é um romance da autora inglesa Charlotte Brontë. Escrito durante o período chamado de era vitoriana, a obra foi publicada em 1847 em três volumes e sob o pseudônimo de Currer Bell. Meu objetivo é trazer minhas impressões sobre alguns pontos que julgo importante na obra, não limitando os muitos assuntos proeminentes: sagrado e profano, imobilismo social, condição da mulher na sociedade vitoriana etc. Para tal, não vou me apegar a traços biográficos, embora, para alguns, a obra Jane Eyre seja um recorte da vida de sua autora, mas deixemos para biógrafos se preocuparem com isso.

            Minha experiência de leitura com esse livro é igual para com todos os livros escritos durante esse período, enfadonho no início, mas satisfatório na conclusão. A obra é considerada um romance de formação, bildungsroman alemão. Minhas observações são para os que já leram a obra; esse é um aviso para os que têm problema com os chamados spoilers, embora acredite que clássico não tem spoiler.

            A obra é muito conhecida por trazer reflexões sobre o papel da mulher naquela sociedade tão favorável ao homem. Muito embora, o que alguns críticos têm feito, na minha concepção, é o inverso: adaptar um texto do século XIX ao contexto contemporâneo. Isso é anacronismo. Mas é importante acentuar que Jane Eyre veio para, se não romper paradigmas, mas para provocar uma discussão sobre eles. Sobretudo pelos “críticos” chamados booktubers. Vejamos:

            Logo após ser requisitada pela Sra. Reed, muito tempo depois de ter saído de casa e se tornado preceptora, Jane encontra suas primas e passa a conviver com elas durante o período de estadia em Gateshead Hall. O romance é todo em primeira pessoa, portanto, estamos limitados às observações de Jane. Mas é curiosa a maneira como ela retrata suas duas primas, Georgiana e Eliza Reed.

            Encontramos Georgiana, uma típica moça do século XIX. Ela passa o dia esperando ser surpreendida: para algum convite de baile, jantar da alta sociedade; possui interesse em vestidos, chapéus, penteados; sua alegria é contar como desperta atenção dos jovens aristocratas. Nas horas vagas procura ler algum romance para espairecer. E é bom lembrar que o romance, à época, era uma literatura sentimental, lido apenas por mulheres. Ela: “passava o dia todo atirada ao sofá, reclamando do tédio que era aquela casa e torcendo para que a tia Gibson mandasse convidá-la para uma temporada na capital.” (p.274).

            Já Eliza é o oposto. Sua vocação era a dedicação, gostava de estar ocupada e evitar a desocupação: “Eliza falava pouco. Não parecia ter tempo para conversa. Nunca vi uma pessoa tão ocupada quanto ela, mas, ao mesmo tempo, era difícil dizer o que ela fazia [...]. Ela não parecia interessada em companhia ou conversa.” (p.273-4);

            Mesmo que Eliza não seja uma personagem extremamente independe, como se tornará Jane Eyre, aquela configura uma ruptura do modelo tradicional, já cristalizado que era a moça vitoriana. Em outras palavras, Eliza rompe com o estereótipo da mulher fútil da época. A oportunidade de voz é dada a Eliza, quando critica o estilo ocioso que Georgiana vive: “Você não deve depender de ninguém, aconteça o que acontecer”. (p.275). Pergunto-me sobre o porquê dessa fala. Minha conclusão é de que essa ideia serve para trazer certa reflexão diante do que Jane passou quando esteve sobre o controle de sua tia. Muito embora, os “críticos” atuais usem para se referir à condição do casamento, à dependência de um marido, ao contextualizar com as difíceis situações que Jane vivenciou essa ideia de que não se deve depender de ninguém é fraudulenta. Jane precisou depender e muito da ajuda de muitas pessoas: Bessie, em Gateshead Hall; Helen Burns e Srta. Temple, em Lowood; Sra. Fairfax, em Thornfield Hall; Hannah, St. John, Diana e Mary Rivers, em Moor House.

            O papel da mulher na sociedade, no casamento, no relacionamento familiar é uma constante, por isso mesmo, acredito que seja o assunto mais explorado na obra. Alguns exemplos: mesmo quando Jane estava prometida se casar com seu patrão, o Sr. Rochester, ela não concebe a ideia de que ele pague por tudo. Ele promete roupas, joias, viagens. Ela pensa:

Seria mesmo uma alívio [...] se eu tivesse um dinheiro só meu, ainda que pouco. Não poderia suportar ser vestida pelo Sr. Rochester como se fosse uma boneca [...]” (p.313).

            Essa posição é atípica quando comparamos com Georgiana. Mas não fica apenas nisso. Há um passeio pelos limites à obediência religiosa:

“Meu patrão se interpunha entre mim e qualquer pensamento religioso, como um eclipse que obstrui para o homem a visão do sol. Não conseguia, àquela altura, enxergar Deus através de Sua criatura. A esta, eu idolatrava”. (p.320);

            É o erotismo sendo despertado naquela que nunca poderia se comparar à Lady Ingram. Mas esse brincar com os limites religiosos, quando posto à prova, é rapidamente corrigido com a razão. Jane, em todo momento, é apresentada como uma mulher a frente de seu tempo, dona de si, que fala o que vem na mente. Mas temos uma Jane conservadora e limitada de sua posição, e, extremamente consciente de sua condição em algumas partes. A primeira quando não aceita sobre nenhuma hipótese continuar com o Sr. Rochester mesmo que ele seja casado com uma louca:

“Eu me importo comigo mesma. E quanto mais solitária, sem amigos e sem sustento, mais eu me respeito. Respeitarei a lei de Deus, que foi sancionada pelo homem. Obedecerei aos princípios aprendidos quando eu estava sã, e não louca, como estou agora. Leis e princípios não forma feitos para os tempos em que não há tentação. Foram feitos para momentos como este agora, quando o corpo e alma se levantam em motim contra seu rigor. Coercivos eles são, e invioláveis devem ser. Se eu os pudesse romper segundo minha conveniência pessoal, que sentido teriam? Eles têm um sentido – nisso, sempre acredite. E se não puder crer neles agora é porque estou insana, porque corre fogo em minhas veia\s, porque meu coração bate tão forte e tão depressa que nem posso acompanhar. Opiniões preconcebidas, determinação passadas são tudo com que posso contar neste hora. São nelas que finco meus pés,” (p.369); Há grande disputa entre a razão e a emoção.

            Na falta de uma palavra melhor, digo que há muito misticismo na obra. Seja nas expressões usadas pelo Sr. Rochester para com Jane (bruxinha, duende, fantasma), seja pelo clima dentro dos ambientes (em Thornfield até então sem a revelação de Bertha), no cenário nublado da epidemia em Lowood etc. Mas há também nas palavras de Jane diante de um castanheiro que havia sido partido em dois por um raio na mesma noite em que o casal estava junto. Na mesma noite que o Sr. Rochester se declara. No dia seguinte há uma espécie de premonição de Jane sobre o futuro que os aguardava:

“Lá estava o tronco negro e retorcido, patido em dois, num arquejar medonhos. As duas partes não tinham sido separadas uma da outra, pois estavam presas à base firme, às fortes raízes. Mas toda a vitalidade fora destruída. A seiva já não podia circular e os galhos imensos estavam mortos. No próximo inverno, as tempestades com certeza iriam fazê-los ir ao chão.[...]
“Vocês fizeram bem em se agarrar um ao outro”, falei, em pensamento [...].
“Apesar de assim destroçados e crestados, ainda há dentro de vocês, creio, um resto de vida, subindo das raízes, com sua força e fé”
. (p.322)

“Tive outro sonho, senhor. Sonhei que Thornifield estava em ruínas, transformada num refúgio de morcegos e corujas. Acho que de toda a parte da frente só restava a fachada vazia, muito alta e parecendo extremamente frágil.” (p.329)

            O castanheiro representava a unidade do amor de Jane e Rochester que diante do abalo da notícia deste já ser casado teve a mesma consequência de um raio dividindo aquela frondosa e larga árvore. Entretanto, não foi suficiente para separar as duas partes. E veremos isso ao longo do enredo. Mesmo diante de todas as adversidades sofridas após abandonar Thornfield, Jane, em um momento de íntimo misticismo, ouve a voz de Rochester e decidi regressar. Encontra Rochester retorcido e partido, mas mantinha a mente em Jane. Inclusive, na noite anterior ao casamento, o sonho de Jane seria o prenúncio do incêndio que Bertha faria em Thornfield Hall, sendo ela, neste caso, vítima do próprio crime.

 

            Jane Eyre era uma exímia pintora. Tinha o dom para aquarelas, retratos, paisagens, criação de imagens da sua imaginação etc. Isso não poderia ficar de fora nas descrições dos espaços que ela vê, afinal, o romance é uma autobiografia, logo, um conjunto de lembranças pessoais, e a maneira de descrever os espaços são feitas pela linguagem artística: retornando a Thornfield Hall decidi vir a pé, e sua descrição é um composto de sons, cores e temperaturas:

“Não fazia uma tarde clara e esplendorosa de verão, mas o tempo estava bom e a temperatura, amena. Os camponeses remexiam no feno ao longo da estrada. E o céu, embora nublado, trazia bons auspícios: seu azul, ou as partes onde se via azul, era suave e a camada de nuvens, alta e esgarçada. A oeste, sinal de calor: não havia qualquer halo que prenunciasse chuva, era como se uma fogueira tivesse sido acesa e um altar ardesse por trás do véu marmóreo do vapor, emitindo raios de um vermelho dourado.” (p.283);

            Considero dois momentos reveladores no romance: o primeiro, quando o advogado de Mason decide explicar a Jane que estava ali não a mando dele, mas a mando de seu tio, que conversando com Mason que estava hospedado em sua residência soube do nome Rochester e que este iria se casar com sua sobrinha Eyre. Ao revelar que Rochester era casado com a irmã de Mason, o Sr. Eyre pede que este interrompa o casamento. Esse é um ponto muito interessante, porque mesmo sabendo que havia um único parente vivo, rico, e que iria deixar tudo para ela, Jane fugiu sem nem demonstrar interesse por ele e/ou pelo dinheiro. O segundo ponto, é quando o Sr. St John revela que Jane era prima dele e de suas irmãs. Somos impactados com os pontos se encaixando. E esse, em minha opinião, é o grande mérito de Charlotte Brontë: o elo entre as histórias paralelas, isto é, entre as personagens secundárias com a principal. Entenda que clímax é diferente. É claro que a revelação de Bertha é algo importante para o desdobramento do romance, mas o causador dessa revelação foi o tio de Jane Eyre. A revelação de St. John Eyre Rivers também provoca a causa do desfecho da obra.

            As cenas que se passam em Moor House por si só é um espetáculo a parte. Podemos explorar muitas outras coisas como: o poder do homem sobre a mulher, a divisão da fortuna de Jane com seus primos (num ambiente individualista essa atitude rompe com o comum), a obediência religiosa etc. Mas destaco que a Jane de Moor House, a professora da escola pública já é uma Jane diferente do início. É claro que em alguns momentos ela vai desafiar a autoridade de seu primo, o Sr. St. John, mas no contexto geral, ela é dominada por ele. E na minha concepção, não no sentido limitado de dominação. Ela segue o dogma de sua fé. É crente na doutrina religiosa calvinista. Acredito que estará fazendo a vontade de Deus indo para as Índias. Jane, neste caso, se deixa dominar, e perceba o leitor que esse “deixar-se dominar” é causado por ela que tem o direito de se deixar dominar. Quando ouve a voz de Rochester, rompe com esse domínio, rompe com o “deixar se dominar” pelo seu primo, e passará a ser dominada pelo Sr. Rochester. Essa é uma parte que poucos entendem. Como é possível que Jane Eyre, menina que sempre teve a resposta na ponta da língua, insubordinada (a sua tia Reed, ao Sr, Brocklehurst, ao Sr. Rochester, em alguns momentos, e ao seu próprio primo St. John), poderia voltar para os braços de um Rochester vencido, cego, maneta, depressivo, e passaria a fazer todas as suas vontades, viver exclusivamente para ele?

            É que Jane quis. Está mais do que provado que ela tinha uma personalidade forte. Era reflexiva. Era decidida. A única explicação para sua subserviência para com o Sr. Rochester era o “deixar-se dominar”. Já não importava se esse era o jogo. O que importava é que estava do lado de alguém que lhe amava e era recíproco. Jane amadurece. Por isso, que, para mim, esse é um grande indício de que Jane Eyre é conservadora. Acredita na soberania de seu povo quando diz que Adele Varens está abandonando os hábitos franceses: “À medida que foi crescendo, uma educação ao estilo inglês corrigiu em grande medida seus defeitos franceses.” (p.524). Acredita na instituição do casamento. Acredita na religião. Acredita no amor. Faço a associação dessa ideia de conservadorismo com a ideia de maturidade. Afinal de contas, é um romance de formação.  

 

BRONTË, Charlotte. Jane Eyre. 2º edição. Rio de Janeiro: BestBolso, 2013.

sábado, 6 de junho de 2020

Resenha da obra Farsa da Boa Preguiça, de Ariano Suassuna


                 
                 
(Ariano Suassuna em 1969, retirado do site: https://amulherdopiolho.com.br/1968-1999-2017-3eed50889438)

                  Para adentrar a obra de Ariano deve-se fazer um esforço para entender o que o dramaturgo quis dizer, por isso, sempre recomendo a leitura de suas obras com texto de apoio, de preferência, do próprio autor.
                
                O nível de abstração de Ariano provoca ressignificações nas palavras, e por isso, se não tivemos o cuidado de uma leitura crítica de suas obras podemos cometer o pecado de acusá-lo de preconceito, radicalismo, de ser reacionário, dentre outros epítetos, que podem nos afastar do rico universo mítico do paraibano de Pernambuco.
A obra em questão é a Farsa da Boa Preguiça, peça teatral escrita em 1960 e montada no Recife pelo Teatro Popular do Nordeste, em 24 de janeiro de 1961, no Teatro de Arena do Recife, sob direção de Hermilo Borba Filho.

Esclarecendo o gênero

                Como todos devem imaginar, a maioria das obras de Ariano são peças teatrais. O teatro de Suassuna é baseado nos modelos medievais de teatro, mas que remontam ao teatro greco-romano, a saber, a Farsa e o Auto.

                Enquanto no Auto havia uma preocupação moralizante, sobretudo, com forte apelo dogmático da religião, a Farsa se baseava em tecer críticas à sociedade, caricaturando tipos, e de curta duração. O Auto da Compadecida é um exemplo clássico disso: o momento mais esperado da peça é a aparição da Compadecida no julgamento celestial. A Farsa da Boa Preguiça possui três atos, rompendo com a estrutura original de apenas um ato. É possível observar que ao contrário do Auto da Compadecida, o enredo é focado em denunciar os vícios, a avareza e a preguiça. Embora possamos elencar nos dois subgêneros a preocupação moralizante e o apelo dogmático, o que torna o teatro suassuniano difícil de ser especificado. Outra diferenciação fica pela quantidade de personagens. Na Farsa a quantidade de personagens é bem menor que no Auto. Ariano demonstra em suas obras ter forte influência do teatro de Molière, e mais ainda, de Gil Vicente.

Farsa da Boa Preguiça - enredo

                O enredo da peça se passa em três Atos (como se fossem capítulos da peça teatral). Todos eles baseados no romanceiro do nordeste brasileiro, seja a partir de peças tradicionais do teatro de mamulengos ou histórias tradicionais que circulavam nas camadas populares.

                A obra conta a história de quatro personagens que acabam se entrelaçando. Aderaldo Catacão, rico homem vindo do Recife e que se estabelece no sertão (local em que se passa a história) e que vive para o trabalho. Dinheiro é o seu Deus. Tem atração por Nevinha, mulher do preguiçoso poeta Joaquim Simão, embora, Aderaldo seja casado com Clarabela. Esta vive uma vida de luxo e se julga conhecedora de Arte. Aquela outra, a mercê da sorte, esperando que Joaquim Simão consiga alguma coisa para alimentar a família, não entende nada de Arte e apenas ri dos versos engraçados que o poeta faz.

                No Primeiro Ato, os personagens nos são apresentado pelo trio celeste, Miguel Arcanjo, Manuel Carpinteiro (o Cristo) e Simão Pedro (São Pedro). Enquanto Manuel Carpinteiro apresenta a vida das personagens, ele se comporta como um camelô vendendo produtos. Miguel Arcanjo defende a postura de Aderaldo, mesmo que este cometa pecado, é pior a situação de Joaquim Simão, homem que vive para preguiça. Simão Pedro contesta e afirma que a preguiça de Joaquim Simão é uma preguiça do Bem. É a preguiça criadora, a necessária para os poetas. Manuel Carpinteiro julgará a situação ao final da peça, mas permite que, durante a peça, três demônios criem conflitos para atrapalhar as personagens da obra: A Cancachorra, disfarçada de Andreza, alcoviteira e que vive tentando Nevinha, a esposa de Joaquim Simão a traí-lo com o rico Aderaldo; o Cão Coxo, disfarçado de Fedegoso, homem aproveitador que se disfarça, no primeiro Ato, de Frade, para roubar o cheque com as finanças de Aderaldo, de sua mulher Clarabela. É um dos amantes de Clarabela também, o vaqueiro Fedegoso; e o Cão Caolho, disfarçado de Quebrapedra, que, também no primeiro ato, se disfarça de ajudante de caminhão para roubar o peru que o Frade (Fedegoso disfarçado) havia deixado no momento do roubo do cheque.

                Esse Primeiro Ato é marcado pelo empobrecimento parcial de Aderaldo pelos demônios disfarçados. Clarabela, além de se interessar pelos poemas de Joaquim Simão, também tem interesse pelo próprio Joaquim Simão. Certo fetiche que possui por homens rudes do sertão. Na concepção de Clarabela, os poemas de Joaquim Simão são muito rudimentares e não estão na vanguarda, tão desejada por ela; resta se aproximar dele para realizar sua fantasia. No primeiro Ato temos também a insistência de Nevinha para que o poeta abandone sua preguiça e vá trabalhar. A família não tem o que comer e os folhetos que Joaquim Simão vende não são suficientes. Ele sempre arruma uma desculpa para não ir trabalhar. Seu espaço criador é o banco em frente a sua residência. Quando não tem interesse em prorrogar a conversação sobre o trabalho Joaquim Simão solta seu bordão: Ô mulher, traz meu lençol, que eu estou no banco deitado!

                No Segundo Ato, há uma investida maior de Clarabela em cima do pobre Joaquim Simão, que deixa se levar pela onda, mas logo é descoberto por sua esposa Nevinha. Passamos a ter a interferência direta de Miguel Arcanjo e Simão Pedro na vida das personagens. Mesmo Aderaldo tendo ficado um pouco mais pobre, conseguiu se reorganizar e voltar a crescer economicamente. O mesmo não aconteceu a Joaquim Simão. Poeta preguiçoso, dormidor de banco, não consegue aumentar seus recursos mesmo depois de ter ganhado uma cabra (Andreza disfarçada) de Simão Pedro. Troca a cabra em um peru velho (Por Miguel Arcanjo disfarçado), depois em um galo de briga com carne pisada e dura, depois em um coelho pedrês, e por fim, troca em um pão francês e um conto. São Pedro e São Miguel se descobrem e inicia uma longa discursão sobre a interferência na vida de Joaquim Simão. Manuel Carpinteiro afirma que mesmo os dois o desobedecendo, tudo saiu conforme seus planos. Aderaldo ao saber das inúteis trocas que Joaquim Simão havia feito, propõe uma aposta: se a esposa do poeta concordasse com todas as trocas ele daria todo o dinheiro que tinha no momento, entretanto, se ela achasse as trocas do marido ruins e reclamasse, Aderaldo passaria a ter o conto de réis, o pão francês e Nevinha. Os santos entram e são testemunhas da aposta, ficam com o dinheiro de Aderaldo e o conto de réis e o pão francês de Joaquim Simão. No final, Nevinha que estava de escuta age de acordo para que o poeta seja o ganhador da aposta. Vencendo a aposta, Aderaldo fica desmoralizado, e Joaquim Simão melhora de vida. Há ainda uma observação de Manuel Carpiteiro:

Só tem, agora, um perigo:
Simão vai mudar de vida!
Venceu a miséria, o que é bom,
e é o sonho da pobreza.
Se ficar nisso, vai bem
e já de ganhar a partida!
Mas se deixar-se vencer
pelo espírito da riqueza, 
está com ela perdida.

Finaliza assim o Segundo Ato.

                O Terceiro Ato é marcado pela volta de Joaquim Simão a pobreza. Depois de ter ficado rico, perdeu o juízo e começou a trair a esposa com Clarabela. Foi ficando cada vez mais parecido com Aderaldo. Simão Pedro afirma que foi preciso apertar o poeta, ele perdeu os bichos da Fazenda Homem da Cabra, a seca acabou com o algodão, e os animais que restaram o morreram por cobra ou mourão. Após a pobreza, Joaquim Simão e Nevinha vão até a residência do rico Aderaldo e Clarabela a procura de emprego. Ele passa a ser mordomo dos dois, e o rico Aderaldo vê nisso uma oportunidade de continuar a lhe humilhar e mostrar que venceu a disputa entre os dois. Clarabela passa a ter Fedegoso e Quebrapedra como amantes. Aderaldo continua a enriquecer, mas dessa vez fica mais avarento, não permite que se gaste com nada, nem mesmo com comida, a ponto de dar ordens a Joaquim Simão de que, se aparecesse algum retirante a porta, que o dispensasse logo. O trio celeste aproveita para testar a reação de Aderaldo e de Simão. Um por um, disfarçados de mendigos, vão pedir esmolas na residência de Aderaldo, e todas as vezes são dispensados por Joaquim Simão a pedidos de Aderaldo. O cúmulo da paciência do velho poeta é quando Aderaldo perde um botão de osso do paletó e obriga-o a encontrar. Simão se aborrece e abandona o emprego, é nesse momento que os três diabos se apresentam e mostram como vinham enganado Aderaldo e esposa desde o primeiro Ato. O condenam ao inferno e afirmam que o único jeito para que possam escapar seria se alguém pudesse rezar um Pai-Nosso e uma Ave-Maria, caso contrário, dentro de sete horas, os diabos o levariam.

                Quando já se passavam quase sete horas, Joaquim Simão e Nevinha voltam a casa do rico Aderaldo e começam a chamar por ele. O Fedegoso aparece e ameaça leva-los também, mas o poeta se irrita e inicia uma luta contra o demônio. Quebrapedra inicia também uma ofensiva contra Joaquim Simão e São Pedro decide ajudá-los. Sendo uma luta bem difícil, São Miguel também intervém. Depois do conflito vencido, os demônios fogem e São Pedro explica ao casal o que aconteceu. Para que Aderaldo e Clarabela fossem salvos precisavam que alguém rezasse por eles. Joaquim Simão e Nevinha iniciam a reza, salva os dois condenados e partem como retirantes para outras terras.


segunda-feira, 9 de março de 2020

Breve resenha de Amor de Perdição, Camilo Castelo Branco


          Amor de Perdição, obra de Camilo Castelo Branco é um marco da literatura ultrarromântica portuguesa. É uma novela passional que conta a história do jovem Simão Botelho, filho do corregedor do Viseu, Domingos Botelho.


         Simão tem uma vida desregrada em Coimbra, jovem com espírito revolucionário, prefere a amizade da plebe, que da nobreza. Até que se apaixona por Teresa, filha de Tadeu de Albuquerque, fidalgo que tem problemas jurídicos com o pai de Simão. O pai de Teresa tenta convencer ela a se casar com seu primo, Baltasar Coutinho. Teresa recusa o casamento e prefere o convento. Baltasar insiste até provocar a ira de Simão, este arranja uma tocaia e mata Baltasar. Morando na casa do ferrador João da Cruz, conhece Mariana, que a trato como seu senhor, provocando grande estima de Simão. Sua relação se estreita com Mariana e ela se apaixona por ele. Em meio a cárceres, conventos e planos, Simão é julgado e condenado a cumprir pena em Índia; Teresa continua presa no convento.

             Por sorte ou ironia do destino (dependendo do ponto de vista) ambos, Simão e Teresa, estão em Porto. Ele preso no navio em direção à Índia avista Teresa o alto do convento. Pouco tempo depois a noticia chega até o navio: Teresa morreu! Ao lado de Mariana, rumo à prisão, Simão entra em delírio e em febre, morre poucos dias depois em alto mar. Os marinheiros vão jogar o corpo dele no mar, mas antes disso, Mariana se atira as águas levando consigo as cartas trocadas de Simão e Teresa.

           Quando li “Amor de Perdição” observei não apenas mais uma obra literária, mas sim, um marco desta época, uma literatura a frente de seu tempo. A obra por mais utópica e perto da pieguice que pareça, discute uma situação que é atual, a condição da classe social. Claramente vemos que Simão preferia a plebe que a nobreza. Zombava de seus ancestrais nobres. Escolheu ficar numa acomodação simples que era a casa do ferrador, mesmo com sua família, lhe dando dinheiro. Abnegou sua condição de pertencente à família Botelho e “adotou-se” na família de Mariana.

           Por isso considero a obra de Camilo Castelo Branco a frente de seu tempo quando denuncia de sua maneira a separação das pessoas mediante a sua classe social. Aprendeu mais com Mariana e João da Cruz, que com sua família nobre e seu pai corregedor.

        De um ponto de vista, estritamente pessoal, as loucuras e os amores nada mais são que sinonímia. Simão poderia ter deixado a ideia de ter Teresa como sua esposa e partir para os braços de Mariana, que teria muito a oferecer; o próprio Simão reconhece essa situação, porém, mediante a sua paixão/loucura, segue-se ao seu martírio confirmando a característica de narrativa ultra romântica.

Autor: Elifas Lira

domingo, 8 de março de 2020

Análise crítica da obra Drácula, de Bram Stoker.


Análise crítica da obra Drácula, de Bram Stoker.


           O espaço da obra é muito bem escolhido e descrito. Whitby tem o ar sombrio, principalmente do alto do cemitério que coincide com a igreja abandonada, semidestruída e que havia sido invadida pelos dinamarqueses. Acredito que pode existir algum aspecto antagonista entre os dois ambientes, Whitby e o Castelo do Conde, há similaridade e diferenças nestes dois espaços geográficos. É como se Whitby fosse uma espécie de alter ego do Castelo do Conde Drácula: enquanto no Castelo há tristeza, escuridão e um clima sombrio, em Whitby, podemos encontrar campos verdejantes, o ar saudável (como Lucy atesta para Mina quando deseja que Jonathan venha para Whitby para se recuperar), clima gostoso, luz, pessoas se amando e refletindo sobre a vida. No Castelo do Conde não há como refletir sobre aspectos da vida senão sobre o aspecto da morte; no Castelo o que se pensa é sobre a morte, em Whitby se pensa na vida, na sobrevivência; no Castelo, morte, em Whitby, vida!
          A presença do ar frio, do luar, do mar negro quando noite, da tempestade, tudo isso combina com o espaço assustador do enredo no romance gótico. Combina também com a descrição dada à região dos Cárpatos e sua miscelânea de povos, entre eles os romenos, os húngaros, os eslovacos, os ciganos, etc. Esse ambiente próspero para elaboração de lendas e superstições é muito bem descrito e representado na obra de Stoker. Principalmente o sincretismo entre o cristianismo e o paganismo germânico da região. À medida que senhoras se benzem e confiam em crucifixos, fazem isto por medo da véspera do dia de São Jorge que seria o período em que todas as coisas más do mundo terão pleno domínio. Imagino que isso tenha prendido bastante o público da época que vivenciava a Belle Époque, período de curiosidade sobre o outro, principalmente do além-ocidente.
    O modelo epistolar que foi utilizado na obra também é interessante. São páginas de diários, cartas, telegramas, áudios de fonógrafo e, até mesmo recortes de reportagens. Essa forma de produzir um romance não traduz nenhuma inovação, era inclusive bem comum à época, mas confere um ar de veracidade, contribuindo para preparar a atmosfera do romance. Quando Mina procurar datilografar as páginas dos diários de Jonathan e seus amigos, nos passa a sensação de que aquilo que temos às mãos foram as mesmas páginas datilografadas por Mina, conferindo esse aspecto que já mencionei de veracidade.
        A relação entre a superstição e a religiosidade de um homem inglês é bem trabalhada na obra. Quando a mulher se aproxima de Jonathan e entrega um crucifixo, ele não sabe como reagir, acreditava que aquele objeto represente a idolatria, mas diante da atmosfera sombria decide colocar o crucifixo no pescoço. Jonathan, a partir dali, já não tem convicção de nada. Suas crenças e certezas são deixadas de lado e passa a vivenciar o local na mais profunda experiência.  
         Quando Jonathan relata em seu diário a pergunta que fez ao Conde sobre o porquê do cocheiro ter parado diversas vezes ao longo do caminho para ir até as chamas azuis que ficavam ao longo da beira da estrada, podemos ler como explicação o seguinte:
“[...] Ele me explicou que era uma crença comumente aceita que, numa determinada noite do ano, ontem à noite na verdade, todos os espíritos malignos tinham a sua influência supostamente desmascarada, e uma chama azul seria vista nos lugares onde havia um tesouro escondido. [...] Esse tesouro foi escondido [...] pois foi uma região disputada durante séculos pelos valáquios, saxões e turcos.”
Não pude deixar de fazer uma comparação com as lendas das botijas que atingem o nordeste brasileiro. Conta-se que pessoas do período colonial, por não terem bancos disponíveis para guardar moedas, colocavam seu dinheiro em jarros (botijas) e enterravam. Com o passar dos séculos, as almas dessas pessoas apareciam nos sonhos dos outros e diziam que em determinado local havia uma botija, e que o trabalho de retirada deveria ser individual e à meia-noite. Ao desenterrar, o sujeito era atormentado por uma série de assombrações para que o fizesse desistir; ficaria com a botija aquele que prevalecesse.
A personagem principal da obra, em minha concepção é a Mina Harker, e não o Jonathan. E isso é muito interessante, pois no contexto histórico, colocar uma mulher como personagem principal é enfrentar uma tradição rigidamente marcada pela presença masculina no protagonismo. Essa observação da inversão do gênero a frente da obra não é inovadora; antes de Stoker, Jane Austen já tinha feito isto. Inclusive, em Northanger Abbey, presenciamos um ambiente gótico, embora o próprio romance critique o romance gótico. Mesmo assim, neste quesito, Stoker não foi original.  Na verdade, Stoker não foi original em nenhum aspecto, nem mesmo na temática da obra, já que ela foi elaborada a partir de contos e lendas que circulavam antes do autor e também à época. Até mesmo o modelo epistolar era bem comum, como já disse anteriormente.
Então porque Stoker consegue produzir uma obra-prima como Drácula? A grande originalidade da obra, em minha observação, é trazer o ar cientificista da época para a história, através da presença do Dr. Van Helsing e também da presença do Dr. John Seward. É deveras um aspecto externo que incluo aqui, a Belle Époque. O ar de inovação tecnológica, cultural e científica domina o mundo no final do século XIX. A Era Vitoriana está no final, mas os elementos moralizantes ainda são fortes. Embora a obra seja elaborada durante a Era Vitoriana, o autor vislumbra a mudança social que atingirá a Era Eduardiana.
Mina Murray (depois Harker quando se casa com Jonathan) é apresentada como uma mulher preocupada com Jonathan e que se dedica a estudar taquigrafia, um método para acelerar a escrita. Mina decora os horários dos trens, e ainda que isso possa parecer inútil é extremamente importante quando estão prestes a sair da Inglaterra. É uma mulher curiosa, interessa-se pelo método psicologista do Dr. Seward, e pede para visitar seu paciente Renfield. É uma mulher que não acredita em superstições, é lógica, é fria quando preciso, e mesmo quando diante de uma situação complexa, opta por refletir e não entrar em conflito. Ela acaba sendo, por vezes, mais inteligente, mais ágio no pensamento do que o Dr. Van Helsing. Prova é quando ela acredita ser melhor leva-la à viagem final, pois assim o Dr. Van Helsing poderia hipnotiza-la e descobrir onde o Conde estava. Isso mostra ser bastante útil. Ao mesmo tempo, também é ciumenta, feminina e carente, atributos que tornam Mina um ser afável, amistoso e recíproca para com os outros. Em minha concepção é o personagem mais importante da obra, até mesmo mais importante que o Drácula, principalmente no que se refere ao Bem vencer o Mal. De repente, pode até ser o antagonismo do Drácula. Ele homem, ela mulher, ela bem, ele mal, ela doce, ele sombrio, ela esperta, ele com “mente de criança”, como diria Van Helsing se referindo ao Conde como alguém que não se desenvolveu completamente. É possível que estejamos diante desses antagonismos entre Mina Harker e o Conde Drácula. Mina não simpatiza com o Nova Mulher, um idealismo da época que influenciou o feminismo durante o século XX. Embora, por vezes, crítica, ela se mostra ao longo da obra o ideal do Nova Mulher. Isso pode ter sido uma estratégia do Stoker para não chocar a sociedade, mas inconscientemente provocar uma reflexão sobre o papel da mulher na sociedade inglesa no final do século XIX. Mina é mulher, submissa, mas é mais inteligente e ativa que os homens, porque deveria continuar sendo submissa? Essa pode ter sido a estratégia de Bram Stoker. Os homens, na obra, também respeitam sua fala, não desmerecem, não desrespeitam suas ações, mas ainda é uma mulher tímida de sua autonomia. É o começo da luta pela emancipação e o declínio de um modelo rígido que culminará com o voto das mulheres em 1918.
O Jonathan é um auxiliar em um escritório de advocacia; é um aprendiz, um homem inexperiente, mas sempre estudando. Muito preocupado com o trabalho, preocupado em agradar seu chefe que o considera como um pai, tanto que, após Jonathan se recuperar do trauma de estar confinando no Castelo do Drácula, seu chefe, que não tinha descendentes, deixa toda sua herança para ele, inclusive o escritório. Outro ponto interessante em relação ao Jonathan é a maneira como ele se relaciona com Mina, sempre de forma muito respeitosa e apaixonada, o que podemos associar ao contexto do romantismo. O olhar de Jonathan para com ela é de proteção, e vingança pelo que o Conde lhe fez. Ele não sente ciúmes de Mina, seu amor é racional, é lógico. É um amor ciente dos espaços, mesmo quando Mina recebe sozinha o Dr. Van Helsing, Jonathan não estranha, não sente raiva, nem ciúmes.
Van Helsing aparece pela primeira vez quando Arthur escreve para o Dr. John Seward. Aquele precisa da ajuda deste para que possa investigar o que está acontecendo com Lucy. O Dr. Seward recorre ao seu velho amigo e mestre que mora em Amsterdã e “que sabe mais sobre doenças obscuras do que qualquer outra pessoa no mundo”. Van Helsing ainda é descrito como um filósofo e metafísico, homem de temperamento frio, nervos de aço e indomável, mas que tem um coração bondoso. A preocupação que ele tem com Mina durante todo o seu sofrimento reflete isso. Ou ainda, o momento que entra em crise, quando chora e rir ao mesmo tempo, logo após a morte de Lucy. É o homem que faz o trabalho sujo, o trabalho pesado, que possui um longo conhecimento e, que embora um cientificista de época, não despreza os conhecimentos rudimentares dos povos antigos, isto é, das superstições. O Dr. Van Helsing é uma espécie de Alquimista, e se fosse escrito em uma era antiga, facilmente poderia ser descrito como um feiticeiro. Mas entenda: um feiticeiro no sentido puro da palavra. O que queremos dizer é que, se trata de um boticário, de um homem que conhece e até tem acesso à ciência da contemporaneidade, mas é um homem que utiliza também receitas de quem viveu longe de todo o avanço da ciência e, diante das aventuras tormentosas, se mostra satisfatório.
O Dr. John Seward é outro caso bem interessante, quando avaliamos esses cientistas diante dos casos de superstição. Ele já é um médico psiquiatra, possui formação no direito, mas é um constante aprendiz. Foi aprendiz de Van Helsing. Mesmo sendo aprendiz, ele consegue aperfeiçoar algumas técnicas de Van Helsing, este tradicional, Seward mais condizente com a contemporaneidade. É importante apontar o elemento psicologista do homem que estuda a mente antes de estudar o corpo. A maneira como ele se relaciona com Renfield é reveladora desse modelo empirista. Do homem que observa e anota; que testa um método, que testa outro, e pra isso chega à conclusão de um fato. Mina Harker se dá bem com ele por isso, pois os dois possuem as mentes parecidas. Age como se fosse um xadrez, cada jogada em busca do xeque. É através disso que ele descobre a influência do Drácula em Renfield. Concluo dizendo que o que falta em Van Helsing sobre em John Seward, e o que falta em Seward sobre em Van Helsing, os dois se completam e se fazem necessários.
A presença de Arthur é o motor financeiro da obra. Naturalmente ele nos aproxima de Lucy pelo viés romântico, pelo seu espírito cortês, e por sua amizade com Quincey Morris, mas a presença dele na obra, em minha opinião, é justificada para resolver os problemas financeiros que os outros personagens teriam. A própria Mina conclui isso:
“[...] E isso me fez pensar, também, no maravilhoso poder do dinheiro! O que o dinheiro não poderia fazer, quando usado de modo indevido! Fico tão grata do Lorde Godalming (Arthur) ser um homem rico, e por ele e o sr. Morris, que também tem bastante dinheiro, estarem dispostos a gastá-lo com tanta liberalidade. Pois se não fossem, nossa pequena expedição não poderia partir – com tanta presteza ou tão bem equipada – como vamos fazer dentro de uma hora.”
Vide o relato, percebemos que para todo o tipo de ação na obra, toda realização, suborno, compra de carruagem, cavalos, hospedagem, alimentação, provisões de todos os tipos, houve a presença do dinheiro e da influência da nobiliarquia de Arthur. Inclusive, até mesmo quando se prontificou a trocar a fechadura da casa do Conde em Piccadilly, Arthur bancou financeiramente os serviços do chaveiro e ficou junto, caso a polícia os interrogassem. Isto é, seu título garantia a veracidade da ação. Mas Arthur também é um getleman, e sofre com a morte de Lucy. Logo, todo o aspecto romântico da estética da época é retomado no casal Lucy e Arthur.
Lucy é uma menina de Whitby e que é amiga de Mina. Sua presença só passa a realmente importar quando encontramos os primeiros indícios dela ter sido vítima do Conde Drácula. E quando passa a ser interessante, sua mãe recebe certa relevância pela ação de ter retirado o colar de alho de Lucy e de ter aberto a janela, que havia sido fechada por Van Helsing para evitar que o Drácula lhe sugasse o sangue. A mãe, inocentemente, que foi poupada da informação, vide seu problema no coração, corrobora para a desgraça de Lucy.
Morris é um texano não totalmente encaixado na sociedade inglesa. Isso é possível observar quando alguns personagens sempre se referem a ele pela maneira como ele fala, pelo seu jeito de se expressar. Embora seja muito amigo de Arthur, não está completamente inserido naquela sociedade. Há um relato sobre ele na carta de Lucy para Mina e ela diz o seguinte:
“[...] simpatizo com a pobre Desdêmona quando lhe sussurraram doces palavras ao ouvido, mesmo que tenha sido o mouro.” Quincey Morris é um mouro no ocidente, um colono, um americano. É como se fosse um elemento externo, e é, pois é dos Estados Unidos. Inclusive na descrição feita por Lucy. É muito simplória. Por isso mesmo, esperamos uma grande ação feita por ele, e algo realmente importante é feito, pelo menos no contexto geral da obra: ele morre pela causa de libertar o mundo do mal do Conde Drácula.  Pode ser que esse seja o ato reservado para esse tímido personagem. Embora apareçam pílulas de sua importância: durante o episódio do cemitério, em que vão matar Lucy, já como vampira, a ação dele é a de liderança, obstinado; acredito ser o que mais tem coragem do grupo, até mesmo mais coragem que Van Helsing. Quando estão planejando invadir as casas do Drácula na Inglaterra, pensa ter visto um morcego na janela e atira. Na parte em que Mina está sendo atacada pelo conde Drácula em seu quarto, todos os homens, com exceção de Jonathan, invadem o quarto, e ao perceber a figura do Conde, mostram os crucifixos e rezam; o monstro foge, e enquanto os outros vão ajudar Mina e Jonathan, Morris corre atrás do Drácula. Portanto, percebo que é o que possui mais coragem dentre eles, o que mais está disposto, inclusive morrendo por todos. 
Por fim, tenho a sensação de que o livro foi encerrado de modo abrupto, principalmente no que se refere à capturar o monstro. Não havia nenhuma armadilha, apenas um grupo de szgany, ciganos que recebem esse nome naquela região, protege e forma a comitiva do Conde. Por isso, achei muito prematura morte do Conde Drácula. Tem até certa resistência por parte dos ciganos, mas acredito que poderia ter um embate mais sombrio. A morte de Lucy, como quando vampira foi até mais difícil que a do Drácula; a única dificuldade, no caso do Conde, é o tempo. Este é o vilão no final da obra; não deixar que a comitiva do Conde chegue ao Castelo antes do pôr do sol. Dessa forma, imagino que a obra tenha sido encerrada de forma prematura.


Autor: Elifas Lira