domingo, 1 de novembro de 2020

Jane Eyre, de Charlotte Brontë - resenha crítica

 

Charlotte Brontë


            Jane Eyre é um romance da autora inglesa Charlotte Brontë. Escrito durante o período chamado de era vitoriana, a obra foi publicada em 1847 em três volumes e sob o pseudônimo de Currer Bell. Meu objetivo é trazer minhas impressões sobre alguns pontos que julgo importante na obra, não limitando os muitos assuntos proeminentes: sagrado e profano, imobilismo social, condição da mulher na sociedade vitoriana etc. Para tal, não vou me apegar a traços biográficos, embora, para alguns, a obra Jane Eyre seja um recorte da vida de sua autora, mas deixemos para biógrafos se preocuparem com isso.

            Minha experiência de leitura com esse livro é igual para com todos os livros escritos durante esse período, enfadonho no início, mas satisfatório na conclusão. A obra é considerada um romance de formação, bildungsroman alemão. Minhas observações são para os que já leram a obra; esse é um aviso para os que têm problema com os chamados spoilers, embora acredite que clássico não tem spoiler.

            A obra é muito conhecida por trazer reflexões sobre o papel da mulher naquela sociedade tão favorável ao homem. Muito embora, o que alguns críticos têm feito, na minha concepção, é o inverso: adaptar um texto do século XIX ao contexto contemporâneo. Isso é anacronismo. Mas é importante acentuar que Jane Eyre veio para, se não romper paradigmas, mas para provocar uma discussão sobre eles. Sobretudo pelos “críticos” chamados booktubers. Vejamos:

            Logo após ser requisitada pela Sra. Reed, muito tempo depois de ter saído de casa e se tornado preceptora, Jane encontra suas primas e passa a conviver com elas durante o período de estadia em Gateshead Hall. O romance é todo em primeira pessoa, portanto, estamos limitados às observações de Jane. Mas é curiosa a maneira como ela retrata suas duas primas, Georgiana e Eliza Reed.

            Encontramos Georgiana, uma típica moça do século XIX. Ela passa o dia esperando ser surpreendida: para algum convite de baile, jantar da alta sociedade; possui interesse em vestidos, chapéus, penteados; sua alegria é contar como desperta atenção dos jovens aristocratas. Nas horas vagas procura ler algum romance para espairecer. E é bom lembrar que o romance, à época, era uma literatura sentimental, lido apenas por mulheres. Ela: “passava o dia todo atirada ao sofá, reclamando do tédio que era aquela casa e torcendo para que a tia Gibson mandasse convidá-la para uma temporada na capital.” (p.274).

            Já Eliza é o oposto. Sua vocação era a dedicação, gostava de estar ocupada e evitar a desocupação: “Eliza falava pouco. Não parecia ter tempo para conversa. Nunca vi uma pessoa tão ocupada quanto ela, mas, ao mesmo tempo, era difícil dizer o que ela fazia [...]. Ela não parecia interessada em companhia ou conversa.” (p.273-4);

            Mesmo que Eliza não seja uma personagem extremamente independe, como se tornará Jane Eyre, aquela configura uma ruptura do modelo tradicional, já cristalizado que era a moça vitoriana. Em outras palavras, Eliza rompe com o estereótipo da mulher fútil da época. A oportunidade de voz é dada a Eliza, quando critica o estilo ocioso que Georgiana vive: “Você não deve depender de ninguém, aconteça o que acontecer”. (p.275). Pergunto-me sobre o porquê dessa fala. Minha conclusão é de que essa ideia serve para trazer certa reflexão diante do que Jane passou quando esteve sobre o controle de sua tia. Muito embora, os “críticos” atuais usem para se referir à condição do casamento, à dependência de um marido, ao contextualizar com as difíceis situações que Jane vivenciou essa ideia de que não se deve depender de ninguém é fraudulenta. Jane precisou depender e muito da ajuda de muitas pessoas: Bessie, em Gateshead Hall; Helen Burns e Srta. Temple, em Lowood; Sra. Fairfax, em Thornfield Hall; Hannah, St. John, Diana e Mary Rivers, em Moor House.

            O papel da mulher na sociedade, no casamento, no relacionamento familiar é uma constante, por isso mesmo, acredito que seja o assunto mais explorado na obra. Alguns exemplos: mesmo quando Jane estava prometida se casar com seu patrão, o Sr. Rochester, ela não concebe a ideia de que ele pague por tudo. Ele promete roupas, joias, viagens. Ela pensa:

Seria mesmo uma alívio [...] se eu tivesse um dinheiro só meu, ainda que pouco. Não poderia suportar ser vestida pelo Sr. Rochester como se fosse uma boneca [...]” (p.313).

            Essa posição é atípica quando comparamos com Georgiana. Mas não fica apenas nisso. Há um passeio pelos limites à obediência religiosa:

“Meu patrão se interpunha entre mim e qualquer pensamento religioso, como um eclipse que obstrui para o homem a visão do sol. Não conseguia, àquela altura, enxergar Deus através de Sua criatura. A esta, eu idolatrava”. (p.320);

            É o erotismo sendo despertado naquela que nunca poderia se comparar à Lady Ingram. Mas esse brincar com os limites religiosos, quando posto à prova, é rapidamente corrigido com a razão. Jane, em todo momento, é apresentada como uma mulher a frente de seu tempo, dona de si, que fala o que vem na mente. Mas temos uma Jane conservadora e limitada de sua posição, e, extremamente consciente de sua condição em algumas partes. A primeira quando não aceita sobre nenhuma hipótese continuar com o Sr. Rochester mesmo que ele seja casado com uma louca:

“Eu me importo comigo mesma. E quanto mais solitária, sem amigos e sem sustento, mais eu me respeito. Respeitarei a lei de Deus, que foi sancionada pelo homem. Obedecerei aos princípios aprendidos quando eu estava sã, e não louca, como estou agora. Leis e princípios não forma feitos para os tempos em que não há tentação. Foram feitos para momentos como este agora, quando o corpo e alma se levantam em motim contra seu rigor. Coercivos eles são, e invioláveis devem ser. Se eu os pudesse romper segundo minha conveniência pessoal, que sentido teriam? Eles têm um sentido – nisso, sempre acredite. E se não puder crer neles agora é porque estou insana, porque corre fogo em minhas veia\s, porque meu coração bate tão forte e tão depressa que nem posso acompanhar. Opiniões preconcebidas, determinação passadas são tudo com que posso contar neste hora. São nelas que finco meus pés,” (p.369); Há grande disputa entre a razão e a emoção.

            Na falta de uma palavra melhor, digo que há muito misticismo na obra. Seja nas expressões usadas pelo Sr. Rochester para com Jane (bruxinha, duende, fantasma), seja pelo clima dentro dos ambientes (em Thornfield até então sem a revelação de Bertha), no cenário nublado da epidemia em Lowood etc. Mas há também nas palavras de Jane diante de um castanheiro que havia sido partido em dois por um raio na mesma noite em que o casal estava junto. Na mesma noite que o Sr. Rochester se declara. No dia seguinte há uma espécie de premonição de Jane sobre o futuro que os aguardava:

“Lá estava o tronco negro e retorcido, patido em dois, num arquejar medonhos. As duas partes não tinham sido separadas uma da outra, pois estavam presas à base firme, às fortes raízes. Mas toda a vitalidade fora destruída. A seiva já não podia circular e os galhos imensos estavam mortos. No próximo inverno, as tempestades com certeza iriam fazê-los ir ao chão.[...]
“Vocês fizeram bem em se agarrar um ao outro”, falei, em pensamento [...].
“Apesar de assim destroçados e crestados, ainda há dentro de vocês, creio, um resto de vida, subindo das raízes, com sua força e fé”
. (p.322)

“Tive outro sonho, senhor. Sonhei que Thornifield estava em ruínas, transformada num refúgio de morcegos e corujas. Acho que de toda a parte da frente só restava a fachada vazia, muito alta e parecendo extremamente frágil.” (p.329)

            O castanheiro representava a unidade do amor de Jane e Rochester que diante do abalo da notícia deste já ser casado teve a mesma consequência de um raio dividindo aquela frondosa e larga árvore. Entretanto, não foi suficiente para separar as duas partes. E veremos isso ao longo do enredo. Mesmo diante de todas as adversidades sofridas após abandonar Thornfield, Jane, em um momento de íntimo misticismo, ouve a voz de Rochester e decidi regressar. Encontra Rochester retorcido e partido, mas mantinha a mente em Jane. Inclusive, na noite anterior ao casamento, o sonho de Jane seria o prenúncio do incêndio que Bertha faria em Thornfield Hall, sendo ela, neste caso, vítima do próprio crime.

 

            Jane Eyre era uma exímia pintora. Tinha o dom para aquarelas, retratos, paisagens, criação de imagens da sua imaginação etc. Isso não poderia ficar de fora nas descrições dos espaços que ela vê, afinal, o romance é uma autobiografia, logo, um conjunto de lembranças pessoais, e a maneira de descrever os espaços são feitas pela linguagem artística: retornando a Thornfield Hall decidi vir a pé, e sua descrição é um composto de sons, cores e temperaturas:

“Não fazia uma tarde clara e esplendorosa de verão, mas o tempo estava bom e a temperatura, amena. Os camponeses remexiam no feno ao longo da estrada. E o céu, embora nublado, trazia bons auspícios: seu azul, ou as partes onde se via azul, era suave e a camada de nuvens, alta e esgarçada. A oeste, sinal de calor: não havia qualquer halo que prenunciasse chuva, era como se uma fogueira tivesse sido acesa e um altar ardesse por trás do véu marmóreo do vapor, emitindo raios de um vermelho dourado.” (p.283);

            Considero dois momentos reveladores no romance: o primeiro, quando o advogado de Mason decide explicar a Jane que estava ali não a mando dele, mas a mando de seu tio, que conversando com Mason que estava hospedado em sua residência soube do nome Rochester e que este iria se casar com sua sobrinha Eyre. Ao revelar que Rochester era casado com a irmã de Mason, o Sr. Eyre pede que este interrompa o casamento. Esse é um ponto muito interessante, porque mesmo sabendo que havia um único parente vivo, rico, e que iria deixar tudo para ela, Jane fugiu sem nem demonstrar interesse por ele e/ou pelo dinheiro. O segundo ponto, é quando o Sr. St John revela que Jane era prima dele e de suas irmãs. Somos impactados com os pontos se encaixando. E esse, em minha opinião, é o grande mérito de Charlotte Brontë: o elo entre as histórias paralelas, isto é, entre as personagens secundárias com a principal. Entenda que clímax é diferente. É claro que a revelação de Bertha é algo importante para o desdobramento do romance, mas o causador dessa revelação foi o tio de Jane Eyre. A revelação de St. John Eyre Rivers também provoca a causa do desfecho da obra.

            As cenas que se passam em Moor House por si só é um espetáculo a parte. Podemos explorar muitas outras coisas como: o poder do homem sobre a mulher, a divisão da fortuna de Jane com seus primos (num ambiente individualista essa atitude rompe com o comum), a obediência religiosa etc. Mas destaco que a Jane de Moor House, a professora da escola pública já é uma Jane diferente do início. É claro que em alguns momentos ela vai desafiar a autoridade de seu primo, o Sr. St. John, mas no contexto geral, ela é dominada por ele. E na minha concepção, não no sentido limitado de dominação. Ela segue o dogma de sua fé. É crente na doutrina religiosa calvinista. Acredito que estará fazendo a vontade de Deus indo para as Índias. Jane, neste caso, se deixa dominar, e perceba o leitor que esse “deixar-se dominar” é causado por ela que tem o direito de se deixar dominar. Quando ouve a voz de Rochester, rompe com esse domínio, rompe com o “deixar se dominar” pelo seu primo, e passará a ser dominada pelo Sr. Rochester. Essa é uma parte que poucos entendem. Como é possível que Jane Eyre, menina que sempre teve a resposta na ponta da língua, insubordinada (a sua tia Reed, ao Sr, Brocklehurst, ao Sr. Rochester, em alguns momentos, e ao seu próprio primo St. John), poderia voltar para os braços de um Rochester vencido, cego, maneta, depressivo, e passaria a fazer todas as suas vontades, viver exclusivamente para ele?

            É que Jane quis. Está mais do que provado que ela tinha uma personalidade forte. Era reflexiva. Era decidida. A única explicação para sua subserviência para com o Sr. Rochester era o “deixar-se dominar”. Já não importava se esse era o jogo. O que importava é que estava do lado de alguém que lhe amava e era recíproco. Jane amadurece. Por isso, que, para mim, esse é um grande indício de que Jane Eyre é conservadora. Acredita na soberania de seu povo quando diz que Adele Varens está abandonando os hábitos franceses: “À medida que foi crescendo, uma educação ao estilo inglês corrigiu em grande medida seus defeitos franceses.” (p.524). Acredita na instituição do casamento. Acredita na religião. Acredita no amor. Faço a associação dessa ideia de conservadorismo com a ideia de maturidade. Afinal de contas, é um romance de formação.  

 

BRONTË, Charlotte. Jane Eyre. 2º edição. Rio de Janeiro: BestBolso, 2013.

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