Análise crítica da obra Drácula, de Bram Stoker.
O espaço da obra é muito bem escolhido e descrito. Whitby tem o ar sombrio,
principalmente do alto do cemitério que coincide com a igreja abandonada, semidestruída
e que havia sido invadida pelos dinamarqueses. Acredito que pode existir algum aspecto antagonista entre os dois ambientes, Whitby e o Castelo do Conde, há similaridade e diferenças nestes dois espaços geográficos. É como se Whitby
fosse uma espécie de alter ego do Castelo do Conde Drácula: enquanto no Castelo
há tristeza, escuridão e um clima sombrio, em Whitby, podemos encontrar campos
verdejantes, o ar saudável (como Lucy atesta para Mina quando deseja que
Jonathan venha para Whitby para se recuperar), clima gostoso, luz, pessoas se
amando e refletindo sobre a vida. No Castelo do Conde não há como refletir
sobre aspectos da vida senão sobre o aspecto da morte; no Castelo o que se
pensa é sobre a morte, em Whitby se pensa na vida, na sobrevivência; no Castelo,
morte, em Whitby, vida!
A presença do ar frio, do luar, do mar negro quando noite, da tempestade, tudo
isso combina com o espaço assustador do enredo no romance gótico. Combina
também com a descrição dada à região dos Cárpatos e sua miscelânea de povos,
entre eles os romenos, os húngaros, os eslovacos, os ciganos, etc. Esse ambiente
próspero para elaboração de lendas e superstições é muito bem descrito e representado
na obra de Stoker. Principalmente o sincretismo entre o cristianismo e o
paganismo germânico da região. À medida que senhoras se benzem e confiam em
crucifixos, fazem isto por medo da véspera do dia de São Jorge que seria o período
em que todas as coisas más do mundo terão
pleno domínio. Imagino que isso tenha prendido bastante o público da época
que vivenciava a Belle Époque, período de curiosidade sobre o outro,
principalmente do além-ocidente.
O modelo epistolar que foi utilizado na obra também é interessante. São páginas
de diários, cartas, telegramas, áudios de fonógrafo e, até mesmo recortes de
reportagens. Essa forma de produzir um romance não traduz nenhuma inovação,
era inclusive bem comum à época, mas confere um ar de veracidade, contribuindo para preparar a atmosfera do romance. Quando Mina procurar datilografar as
páginas dos diários de Jonathan e seus amigos, nos passa a sensação de que aquilo
que temos às mãos foram as mesmas páginas datilografadas por Mina, conferindo esse
aspecto que já mencionei de veracidade.
A relação entre a superstição e a religiosidade de um homem inglês é bem
trabalhada na obra. Quando a mulher se aproxima de Jonathan e entrega um
crucifixo, ele não sabe como reagir, acreditava que aquele objeto represente a
idolatria, mas diante da atmosfera sombria decide colocar o crucifixo no pescoço. Jonathan, a partir dali, já não tem convicção de nada. Suas crenças e
certezas são deixadas de lado e passa a vivenciar o local na mais profunda
experiência.
Quando Jonathan relata em seu diário a pergunta que fez ao Conde sobre o porquê do
cocheiro ter parado diversas vezes ao longo do caminho para ir até as chamas azuis
que ficavam ao longo da beira da estrada, podemos ler como explicação o seguinte:
“[...] Ele me
explicou que era uma crença comumente aceita que, numa determinada noite do
ano, ontem à noite na verdade, todos os espíritos malignos tinham a sua
influência supostamente desmascarada, e uma chama azul seria vista nos lugares
onde havia um tesouro escondido. [...] Esse tesouro foi escondido [...] pois
foi uma região disputada durante séculos pelos valáquios, saxões e turcos.”
Não
pude deixar de fazer uma comparação com as lendas das botijas que atingem o
nordeste brasileiro. Conta-se que pessoas do período colonial, por não terem
bancos disponíveis para guardar moedas, colocavam seu dinheiro em jarros
(botijas) e enterravam. Com o passar dos séculos, as almas dessas
pessoas apareciam nos sonhos dos outros e diziam que em determinado
local havia uma botija, e que o trabalho de
retirada deveria ser individual e à meia-noite. Ao desenterrar, o sujeito era
atormentado por uma série de assombrações para que o fizesse desistir; ficaria com a botija aquele que prevalecesse.
A personagem principal da obra, em minha concepção é a Mina Harker, e não o
Jonathan. E isso é muito interessante, pois no contexto histórico, colocar uma
mulher como personagem principal é enfrentar uma tradição rigidamente marcada
pela presença masculina no protagonismo. Essa observação da inversão do gênero a
frente da obra não é inovadora; antes de Stoker, Jane Austen já tinha feito
isto. Inclusive, em Northanger Abbey, presenciamos um ambiente gótico, embora o próprio romance critique o romance gótico. Mesmo assim, neste quesito, Stoker não foi
original. Na verdade, Stoker não foi
original em nenhum aspecto, nem mesmo na temática da obra, já que ela foi
elaborada a partir de contos e lendas que circulavam antes do autor e também à época. Até mesmo o modelo epistolar era bem comum, como já disse anteriormente.
Então
porque Stoker consegue produzir uma obra-prima como Drácula? A grande originalidade da obra, em minha observação, é trazer o ar cientificista
da época para a história, através da presença do Dr. Van Helsing e também da presença
do Dr. John Seward. É deveras um aspecto externo que incluo aqui, a Belle Époque. O ar de inovação
tecnológica, cultural e científica domina o mundo no final do século XIX. A Era
Vitoriana está no final, mas os elementos moralizantes ainda são fortes. Embora
a obra seja elaborada durante a Era Vitoriana, o autor vislumbra a mudança
social que atingirá a Era Eduardiana.
Mina
Murray (depois Harker quando se casa com Jonathan) é apresentada como uma
mulher preocupada com Jonathan e que se dedica a estudar taquigrafia, um método
para acelerar a escrita. Mina decora os horários dos trens, e ainda que isso
possa parecer inútil é extremamente importante quando estão prestes a sair da
Inglaterra. É uma mulher curiosa, interessa-se pelo método psicologista do Dr.
Seward, e pede para visitar seu paciente Renfield. É uma mulher que não
acredita em superstições, é lógica, é fria quando preciso, e mesmo quando
diante de uma situação complexa, opta por refletir e não entrar em conflito. Ela acaba
sendo, por vezes, mais inteligente, mais ágio no pensamento do que o Dr. Van
Helsing. Prova é quando ela acredita ser melhor leva-la à viagem
final, pois assim o Dr. Van Helsing poderia hipnotiza-la e descobrir onde o
Conde estava. Isso mostra ser bastante útil. Ao mesmo tempo, também é ciumenta,
feminina e carente, atributos que tornam Mina um ser afável, amistoso e
recíproca para com os outros. Em minha concepção é o personagem mais importante da obra, até mesmo mais importante que o Drácula, principalmente no que se
refere ao Bem vencer o Mal. De repente, pode até ser o antagonismo do Drácula.
Ele homem, ela mulher, ela bem, ele mal, ela doce, ele sombrio, ela esperta, ele
com “mente de criança”, como diria Van Helsing se referindo ao Conde como alguém
que não se desenvolveu completamente. É possível que estejamos diante desses antagonismos
entre Mina Harker e o Conde Drácula. Mina não simpatiza com o Nova Mulher, um idealismo da época que influenciou
o feminismo durante o século XX. Embora, por vezes, crítica, ela se mostra ao
longo da obra o ideal do Nova Mulher.
Isso pode ter sido uma estratégia do Stoker para não chocar a sociedade, mas inconscientemente
provocar uma reflexão sobre o papel da mulher na sociedade inglesa no final do
século XIX. Mina é mulher, submissa, mas é mais inteligente e ativa que os
homens, porque deveria continuar sendo submissa? Essa pode ter sido a
estratégia de Bram Stoker. Os homens, na obra, também respeitam sua fala, não
desmerecem, não desrespeitam suas ações, mas ainda é uma mulher tímida de sua
autonomia. É o começo da luta pela emancipação e o declínio de um modelo
rígido que culminará com o voto das mulheres em 1918.
O Jonathan é um auxiliar em um escritório de advocacia; é um aprendiz, um homem
inexperiente, mas sempre estudando. Muito preocupado com o trabalho, preocupado
em agradar seu chefe que o considera como um pai, tanto que, após Jonathan se
recuperar do trauma de estar confinando no Castelo do Drácula, seu chefe, que não tinha descendentes, deixa toda sua herança para ele, inclusive o escritório. Outro
ponto interessante em relação ao Jonathan é a maneira como ele se relaciona com Mina, sempre de forma muito respeitosa e apaixonada, o que podemos associar ao
contexto do romantismo. O olhar
de Jonathan para com ela é de proteção, e vingança pelo que o Conde lhe fez. Ele não sente ciúmes de Mina, seu amor é racional, é lógico. É um amor
ciente dos espaços, mesmo quando Mina recebe sozinha o Dr. Van Helsing,
Jonathan não estranha, não sente raiva, nem ciúmes.
Van Helsing aparece pela primeira vez quando Arthur escreve para o Dr. John Seward. Aquele precisa da ajuda deste para que possa investigar o que está acontecendo com
Lucy. O Dr. Seward recorre ao seu velho amigo e mestre que mora em Amsterdã e “que
sabe mais sobre doenças obscuras do que qualquer outra pessoa no mundo”. Van
Helsing ainda é descrito como um filósofo e metafísico, homem de temperamento
frio, nervos de aço e indomável, mas que tem um coração bondoso. A preocupação que
ele tem com Mina durante todo o seu sofrimento reflete isso. Ou ainda, o
momento que entra em crise, quando chora e rir ao mesmo tempo, logo após a
morte de Lucy. É o homem que faz o trabalho sujo, o trabalho pesado, que possui
um longo conhecimento e, que embora um cientificista de época, não despreza os
conhecimentos rudimentares dos povos antigos, isto é, das superstições. O Dr.
Van Helsing é uma espécie de Alquimista, e se fosse escrito em uma era
antiga, facilmente poderia ser descrito como um feiticeiro. Mas entenda: um
feiticeiro no sentido puro da palavra. O que queremos dizer é que, se trata de
um boticário, de um homem que conhece e até tem acesso à ciência da
contemporaneidade, mas é um homem que utiliza também receitas de quem viveu
longe de todo o avanço da ciência e, diante das aventuras tormentosas, se mostra satisfatório.
O Dr. John Seward é outro caso bem interessante, quando avaliamos esses
cientistas diante dos casos de superstição. Ele já é um médico psiquiatra,
possui formação no direito, mas é um constante aprendiz. Foi aprendiz de Van
Helsing. Mesmo sendo aprendiz, ele consegue aperfeiçoar algumas técnicas de Van Helsing, este tradicional, Seward mais condizente com a
contemporaneidade. É importante apontar o elemento psicologista do homem que
estuda a mente antes de estudar o corpo. A maneira como ele se relaciona com Renfield
é reveladora desse modelo empirista. Do homem que observa e anota; que testa um
método, que testa outro, e pra isso chega à conclusão de um fato. Mina Harker
se dá bem com ele por isso, pois os dois possuem as mentes parecidas. Age como se fosse um xadrez, cada jogada em busca do xeque. É através disso que ele
descobre a influência do Drácula em Renfield. Concluo dizendo que o que falta
em Van Helsing sobre em John Seward, e o que falta em Seward sobre em Van
Helsing, os dois se completam e se fazem necessários.
A presença de Arthur é o motor financeiro da obra. Naturalmente ele nos aproxima
de Lucy pelo viés romântico, pelo seu espírito cortês, e por sua amizade com
Quincey Morris, mas a presença dele na obra, em minha opinião, é justificada para resolver
os problemas financeiros que os outros personagens teriam. A própria Mina
conclui isso:
“[...] E isso
me fez pensar, também, no maravilhoso poder do dinheiro! O que o dinheiro não
poderia fazer, quando usado de modo indevido! Fico tão grata do Lorde Godalming
(Arthur) ser um homem rico, e por ele e o sr. Morris, que também tem bastante
dinheiro, estarem dispostos a gastá-lo com tanta liberalidade. Pois se não
fossem, nossa pequena expedição não poderia partir – com tanta presteza ou tão
bem equipada – como vamos fazer dentro de uma hora.”
Vide
o relato, percebemos que para todo o tipo de ação na obra, toda realização,
suborno, compra de carruagem, cavalos, hospedagem, alimentação, provisões de
todos os tipos, houve a presença do dinheiro e da influência da nobiliarquia de
Arthur. Inclusive, até mesmo quando se prontificou a trocar a fechadura da casa
do Conde em Piccadilly, Arthur bancou financeiramente os serviços do chaveiro e
ficou junto, caso a polícia os interrogassem. Isto é, seu título garantia a
veracidade da ação. Mas Arthur também é um getleman, e sofre com a morte de Lucy.
Logo, todo o aspecto romântico da estética da época é retomado no casal Lucy e
Arthur.
Lucy é uma menina de Whitby e que é amiga de Mina. Sua presença só passa a realmente
importar quando encontramos os primeiros indícios dela ter sido vítima do Conde
Drácula. E quando passa a ser interessante, sua mãe recebe certa relevância pela
ação de ter retirado o colar de alho de Lucy e de ter aberto a janela, que
havia sido fechada por Van Helsing para evitar que o Drácula lhe sugasse o
sangue. A mãe, inocentemente, que foi poupada da informação, vide seu problema
no coração, corrobora para a desgraça de Lucy.
Morris é um texano não totalmente encaixado na sociedade inglesa. Isso é possível
observar quando alguns personagens sempre se referem a ele pela maneira como
ele fala, pelo seu jeito de se expressar. Embora seja muito amigo de Arthur,
não está completamente inserido naquela sociedade. Há um relato sobre ele na
carta de Lucy para Mina e ela diz o seguinte:
“[...] simpatizo
com a pobre Desdêmona quando lhe sussurraram doces palavras ao ouvido, mesmo
que tenha sido o mouro.” Quincey Morris é um mouro no ocidente, um colono, um americano. É como se fosse um
elemento externo, e é, pois é dos Estados Unidos. Inclusive na descrição feita
por Lucy. É muito simplória. Por isso mesmo, esperamos uma grande ação feita por
ele, e algo realmente importante é feito, pelo menos no contexto geral da obra: ele morre
pela causa de libertar o mundo do mal do Conde Drácula. Pode ser que esse seja o ato reservado para
esse tímido personagem. Embora apareçam pílulas de sua importância: durante o
episódio do cemitério, em que vão matar Lucy, já como vampira, a ação dele é a de
liderança, obstinado; acredito ser o que mais tem coragem do grupo, até
mesmo mais coragem que Van Helsing. Quando estão planejando invadir as casas do
Drácula na Inglaterra, pensa ter visto um morcego na janela e atira. Na parte
em que Mina está sendo atacada pelo conde Drácula em seu quarto, todos os
homens, com exceção de Jonathan, invadem o quarto, e ao perceber a figura do Conde,
mostram os crucifixos e rezam; o monstro foge, e enquanto os outros vão ajudar
Mina e Jonathan, Morris corre atrás do Drácula. Portanto, percebo que é o que
possui mais coragem dentre eles, o que mais está disposto, inclusive morrendo por
todos.
Por fim, tenho a sensação de que o livro foi encerrado de modo abrupto,
principalmente no que se refere à capturar o monstro. Não havia nenhuma
armadilha, apenas um grupo de szgany,
ciganos que recebem esse nome naquela região, protege e forma a comitiva do
Conde. Por isso, achei muito prematura morte do Conde Drácula. Tem até certa
resistência por parte dos ciganos, mas acredito que poderia ter um embate mais
sombrio. A morte de Lucy, como quando vampira foi até mais difícil que a do
Drácula; a única dificuldade, no caso do Conde, é o tempo. Este é o vilão no final da obra; não
deixar que a comitiva do Conde chegue ao Castelo antes do pôr do sol. Dessa
forma, imagino que a obra tenha sido encerrada de forma prematura.
(imagem retirada do link: https://i0.wp.com/www.fatosdesconhecidos.com.br/wp-content/uploads/2015/07/hotel-bran.jpg?resize=)
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