segunda-feira, 9 de março de 2020

Breve resenha de Amor de Perdição, Camilo Castelo Branco


          Amor de Perdição, obra de Camilo Castelo Branco é um marco da literatura ultrarromântica portuguesa. É uma novela passional que conta a história do jovem Simão Botelho, filho do corregedor do Viseu, Domingos Botelho.


         Simão tem uma vida desregrada em Coimbra, jovem com espírito revolucionário, prefere a amizade da plebe, que da nobreza. Até que se apaixona por Teresa, filha de Tadeu de Albuquerque, fidalgo que tem problemas jurídicos com o pai de Simão. O pai de Teresa tenta convencer ela a se casar com seu primo, Baltasar Coutinho. Teresa recusa o casamento e prefere o convento. Baltasar insiste até provocar a ira de Simão, este arranja uma tocaia e mata Baltasar. Morando na casa do ferrador João da Cruz, conhece Mariana, que a trato como seu senhor, provocando grande estima de Simão. Sua relação se estreita com Mariana e ela se apaixona por ele. Em meio a cárceres, conventos e planos, Simão é julgado e condenado a cumprir pena em Índia; Teresa continua presa no convento.

             Por sorte ou ironia do destino (dependendo do ponto de vista) ambos, Simão e Teresa, estão em Porto. Ele preso no navio em direção à Índia avista Teresa o alto do convento. Pouco tempo depois a noticia chega até o navio: Teresa morreu! Ao lado de Mariana, rumo à prisão, Simão entra em delírio e em febre, morre poucos dias depois em alto mar. Os marinheiros vão jogar o corpo dele no mar, mas antes disso, Mariana se atira as águas levando consigo as cartas trocadas de Simão e Teresa.

           Quando li “Amor de Perdição” observei não apenas mais uma obra literária, mas sim, um marco desta época, uma literatura a frente de seu tempo. A obra por mais utópica e perto da pieguice que pareça, discute uma situação que é atual, a condição da classe social. Claramente vemos que Simão preferia a plebe que a nobreza. Zombava de seus ancestrais nobres. Escolheu ficar numa acomodação simples que era a casa do ferrador, mesmo com sua família, lhe dando dinheiro. Abnegou sua condição de pertencente à família Botelho e “adotou-se” na família de Mariana.

           Por isso considero a obra de Camilo Castelo Branco a frente de seu tempo quando denuncia de sua maneira a separação das pessoas mediante a sua classe social. Aprendeu mais com Mariana e João da Cruz, que com sua família nobre e seu pai corregedor.

        De um ponto de vista, estritamente pessoal, as loucuras e os amores nada mais são que sinonímia. Simão poderia ter deixado a ideia de ter Teresa como sua esposa e partir para os braços de Mariana, que teria muito a oferecer; o próprio Simão reconhece essa situação, porém, mediante a sua paixão/loucura, segue-se ao seu martírio confirmando a característica de narrativa ultra romântica.

Autor: Elifas Lira

domingo, 8 de março de 2020

Análise crítica da obra Drácula, de Bram Stoker.


Análise crítica da obra Drácula, de Bram Stoker.


           O espaço da obra é muito bem escolhido e descrito. Whitby tem o ar sombrio, principalmente do alto do cemitério que coincide com a igreja abandonada, semidestruída e que havia sido invadida pelos dinamarqueses. Acredito que pode existir algum aspecto antagonista entre os dois ambientes, Whitby e o Castelo do Conde, há similaridade e diferenças nestes dois espaços geográficos. É como se Whitby fosse uma espécie de alter ego do Castelo do Conde Drácula: enquanto no Castelo há tristeza, escuridão e um clima sombrio, em Whitby, podemos encontrar campos verdejantes, o ar saudável (como Lucy atesta para Mina quando deseja que Jonathan venha para Whitby para se recuperar), clima gostoso, luz, pessoas se amando e refletindo sobre a vida. No Castelo do Conde não há como refletir sobre aspectos da vida senão sobre o aspecto da morte; no Castelo o que se pensa é sobre a morte, em Whitby se pensa na vida, na sobrevivência; no Castelo, morte, em Whitby, vida!
          A presença do ar frio, do luar, do mar negro quando noite, da tempestade, tudo isso combina com o espaço assustador do enredo no romance gótico. Combina também com a descrição dada à região dos Cárpatos e sua miscelânea de povos, entre eles os romenos, os húngaros, os eslovacos, os ciganos, etc. Esse ambiente próspero para elaboração de lendas e superstições é muito bem descrito e representado na obra de Stoker. Principalmente o sincretismo entre o cristianismo e o paganismo germânico da região. À medida que senhoras se benzem e confiam em crucifixos, fazem isto por medo da véspera do dia de São Jorge que seria o período em que todas as coisas más do mundo terão pleno domínio. Imagino que isso tenha prendido bastante o público da época que vivenciava a Belle Époque, período de curiosidade sobre o outro, principalmente do além-ocidente.
    O modelo epistolar que foi utilizado na obra também é interessante. São páginas de diários, cartas, telegramas, áudios de fonógrafo e, até mesmo recortes de reportagens. Essa forma de produzir um romance não traduz nenhuma inovação, era inclusive bem comum à época, mas confere um ar de veracidade, contribuindo para preparar a atmosfera do romance. Quando Mina procurar datilografar as páginas dos diários de Jonathan e seus amigos, nos passa a sensação de que aquilo que temos às mãos foram as mesmas páginas datilografadas por Mina, conferindo esse aspecto que já mencionei de veracidade.
        A relação entre a superstição e a religiosidade de um homem inglês é bem trabalhada na obra. Quando a mulher se aproxima de Jonathan e entrega um crucifixo, ele não sabe como reagir, acreditava que aquele objeto represente a idolatria, mas diante da atmosfera sombria decide colocar o crucifixo no pescoço. Jonathan, a partir dali, já não tem convicção de nada. Suas crenças e certezas são deixadas de lado e passa a vivenciar o local na mais profunda experiência.  
         Quando Jonathan relata em seu diário a pergunta que fez ao Conde sobre o porquê do cocheiro ter parado diversas vezes ao longo do caminho para ir até as chamas azuis que ficavam ao longo da beira da estrada, podemos ler como explicação o seguinte:
“[...] Ele me explicou que era uma crença comumente aceita que, numa determinada noite do ano, ontem à noite na verdade, todos os espíritos malignos tinham a sua influência supostamente desmascarada, e uma chama azul seria vista nos lugares onde havia um tesouro escondido. [...] Esse tesouro foi escondido [...] pois foi uma região disputada durante séculos pelos valáquios, saxões e turcos.”
Não pude deixar de fazer uma comparação com as lendas das botijas que atingem o nordeste brasileiro. Conta-se que pessoas do período colonial, por não terem bancos disponíveis para guardar moedas, colocavam seu dinheiro em jarros (botijas) e enterravam. Com o passar dos séculos, as almas dessas pessoas apareciam nos sonhos dos outros e diziam que em determinado local havia uma botija, e que o trabalho de retirada deveria ser individual e à meia-noite. Ao desenterrar, o sujeito era atormentado por uma série de assombrações para que o fizesse desistir; ficaria com a botija aquele que prevalecesse.
A personagem principal da obra, em minha concepção é a Mina Harker, e não o Jonathan. E isso é muito interessante, pois no contexto histórico, colocar uma mulher como personagem principal é enfrentar uma tradição rigidamente marcada pela presença masculina no protagonismo. Essa observação da inversão do gênero a frente da obra não é inovadora; antes de Stoker, Jane Austen já tinha feito isto. Inclusive, em Northanger Abbey, presenciamos um ambiente gótico, embora o próprio romance critique o romance gótico. Mesmo assim, neste quesito, Stoker não foi original.  Na verdade, Stoker não foi original em nenhum aspecto, nem mesmo na temática da obra, já que ela foi elaborada a partir de contos e lendas que circulavam antes do autor e também à época. Até mesmo o modelo epistolar era bem comum, como já disse anteriormente.
Então porque Stoker consegue produzir uma obra-prima como Drácula? A grande originalidade da obra, em minha observação, é trazer o ar cientificista da época para a história, através da presença do Dr. Van Helsing e também da presença do Dr. John Seward. É deveras um aspecto externo que incluo aqui, a Belle Époque. O ar de inovação tecnológica, cultural e científica domina o mundo no final do século XIX. A Era Vitoriana está no final, mas os elementos moralizantes ainda são fortes. Embora a obra seja elaborada durante a Era Vitoriana, o autor vislumbra a mudança social que atingirá a Era Eduardiana.
Mina Murray (depois Harker quando se casa com Jonathan) é apresentada como uma mulher preocupada com Jonathan e que se dedica a estudar taquigrafia, um método para acelerar a escrita. Mina decora os horários dos trens, e ainda que isso possa parecer inútil é extremamente importante quando estão prestes a sair da Inglaterra. É uma mulher curiosa, interessa-se pelo método psicologista do Dr. Seward, e pede para visitar seu paciente Renfield. É uma mulher que não acredita em superstições, é lógica, é fria quando preciso, e mesmo quando diante de uma situação complexa, opta por refletir e não entrar em conflito. Ela acaba sendo, por vezes, mais inteligente, mais ágio no pensamento do que o Dr. Van Helsing. Prova é quando ela acredita ser melhor leva-la à viagem final, pois assim o Dr. Van Helsing poderia hipnotiza-la e descobrir onde o Conde estava. Isso mostra ser bastante útil. Ao mesmo tempo, também é ciumenta, feminina e carente, atributos que tornam Mina um ser afável, amistoso e recíproca para com os outros. Em minha concepção é o personagem mais importante da obra, até mesmo mais importante que o Drácula, principalmente no que se refere ao Bem vencer o Mal. De repente, pode até ser o antagonismo do Drácula. Ele homem, ela mulher, ela bem, ele mal, ela doce, ele sombrio, ela esperta, ele com “mente de criança”, como diria Van Helsing se referindo ao Conde como alguém que não se desenvolveu completamente. É possível que estejamos diante desses antagonismos entre Mina Harker e o Conde Drácula. Mina não simpatiza com o Nova Mulher, um idealismo da época que influenciou o feminismo durante o século XX. Embora, por vezes, crítica, ela se mostra ao longo da obra o ideal do Nova Mulher. Isso pode ter sido uma estratégia do Stoker para não chocar a sociedade, mas inconscientemente provocar uma reflexão sobre o papel da mulher na sociedade inglesa no final do século XIX. Mina é mulher, submissa, mas é mais inteligente e ativa que os homens, porque deveria continuar sendo submissa? Essa pode ter sido a estratégia de Bram Stoker. Os homens, na obra, também respeitam sua fala, não desmerecem, não desrespeitam suas ações, mas ainda é uma mulher tímida de sua autonomia. É o começo da luta pela emancipação e o declínio de um modelo rígido que culminará com o voto das mulheres em 1918.
O Jonathan é um auxiliar em um escritório de advocacia; é um aprendiz, um homem inexperiente, mas sempre estudando. Muito preocupado com o trabalho, preocupado em agradar seu chefe que o considera como um pai, tanto que, após Jonathan se recuperar do trauma de estar confinando no Castelo do Drácula, seu chefe, que não tinha descendentes, deixa toda sua herança para ele, inclusive o escritório. Outro ponto interessante em relação ao Jonathan é a maneira como ele se relaciona com Mina, sempre de forma muito respeitosa e apaixonada, o que podemos associar ao contexto do romantismo. O olhar de Jonathan para com ela é de proteção, e vingança pelo que o Conde lhe fez. Ele não sente ciúmes de Mina, seu amor é racional, é lógico. É um amor ciente dos espaços, mesmo quando Mina recebe sozinha o Dr. Van Helsing, Jonathan não estranha, não sente raiva, nem ciúmes.
Van Helsing aparece pela primeira vez quando Arthur escreve para o Dr. John Seward. Aquele precisa da ajuda deste para que possa investigar o que está acontecendo com Lucy. O Dr. Seward recorre ao seu velho amigo e mestre que mora em Amsterdã e “que sabe mais sobre doenças obscuras do que qualquer outra pessoa no mundo”. Van Helsing ainda é descrito como um filósofo e metafísico, homem de temperamento frio, nervos de aço e indomável, mas que tem um coração bondoso. A preocupação que ele tem com Mina durante todo o seu sofrimento reflete isso. Ou ainda, o momento que entra em crise, quando chora e rir ao mesmo tempo, logo após a morte de Lucy. É o homem que faz o trabalho sujo, o trabalho pesado, que possui um longo conhecimento e, que embora um cientificista de época, não despreza os conhecimentos rudimentares dos povos antigos, isto é, das superstições. O Dr. Van Helsing é uma espécie de Alquimista, e se fosse escrito em uma era antiga, facilmente poderia ser descrito como um feiticeiro. Mas entenda: um feiticeiro no sentido puro da palavra. O que queremos dizer é que, se trata de um boticário, de um homem que conhece e até tem acesso à ciência da contemporaneidade, mas é um homem que utiliza também receitas de quem viveu longe de todo o avanço da ciência e, diante das aventuras tormentosas, se mostra satisfatório.
O Dr. John Seward é outro caso bem interessante, quando avaliamos esses cientistas diante dos casos de superstição. Ele já é um médico psiquiatra, possui formação no direito, mas é um constante aprendiz. Foi aprendiz de Van Helsing. Mesmo sendo aprendiz, ele consegue aperfeiçoar algumas técnicas de Van Helsing, este tradicional, Seward mais condizente com a contemporaneidade. É importante apontar o elemento psicologista do homem que estuda a mente antes de estudar o corpo. A maneira como ele se relaciona com Renfield é reveladora desse modelo empirista. Do homem que observa e anota; que testa um método, que testa outro, e pra isso chega à conclusão de um fato. Mina Harker se dá bem com ele por isso, pois os dois possuem as mentes parecidas. Age como se fosse um xadrez, cada jogada em busca do xeque. É através disso que ele descobre a influência do Drácula em Renfield. Concluo dizendo que o que falta em Van Helsing sobre em John Seward, e o que falta em Seward sobre em Van Helsing, os dois se completam e se fazem necessários.
A presença de Arthur é o motor financeiro da obra. Naturalmente ele nos aproxima de Lucy pelo viés romântico, pelo seu espírito cortês, e por sua amizade com Quincey Morris, mas a presença dele na obra, em minha opinião, é justificada para resolver os problemas financeiros que os outros personagens teriam. A própria Mina conclui isso:
“[...] E isso me fez pensar, também, no maravilhoso poder do dinheiro! O que o dinheiro não poderia fazer, quando usado de modo indevido! Fico tão grata do Lorde Godalming (Arthur) ser um homem rico, e por ele e o sr. Morris, que também tem bastante dinheiro, estarem dispostos a gastá-lo com tanta liberalidade. Pois se não fossem, nossa pequena expedição não poderia partir – com tanta presteza ou tão bem equipada – como vamos fazer dentro de uma hora.”
Vide o relato, percebemos que para todo o tipo de ação na obra, toda realização, suborno, compra de carruagem, cavalos, hospedagem, alimentação, provisões de todos os tipos, houve a presença do dinheiro e da influência da nobiliarquia de Arthur. Inclusive, até mesmo quando se prontificou a trocar a fechadura da casa do Conde em Piccadilly, Arthur bancou financeiramente os serviços do chaveiro e ficou junto, caso a polícia os interrogassem. Isto é, seu título garantia a veracidade da ação. Mas Arthur também é um getleman, e sofre com a morte de Lucy. Logo, todo o aspecto romântico da estética da época é retomado no casal Lucy e Arthur.
Lucy é uma menina de Whitby e que é amiga de Mina. Sua presença só passa a realmente importar quando encontramos os primeiros indícios dela ter sido vítima do Conde Drácula. E quando passa a ser interessante, sua mãe recebe certa relevância pela ação de ter retirado o colar de alho de Lucy e de ter aberto a janela, que havia sido fechada por Van Helsing para evitar que o Drácula lhe sugasse o sangue. A mãe, inocentemente, que foi poupada da informação, vide seu problema no coração, corrobora para a desgraça de Lucy.
Morris é um texano não totalmente encaixado na sociedade inglesa. Isso é possível observar quando alguns personagens sempre se referem a ele pela maneira como ele fala, pelo seu jeito de se expressar. Embora seja muito amigo de Arthur, não está completamente inserido naquela sociedade. Há um relato sobre ele na carta de Lucy para Mina e ela diz o seguinte:
“[...] simpatizo com a pobre Desdêmona quando lhe sussurraram doces palavras ao ouvido, mesmo que tenha sido o mouro.” Quincey Morris é um mouro no ocidente, um colono, um americano. É como se fosse um elemento externo, e é, pois é dos Estados Unidos. Inclusive na descrição feita por Lucy. É muito simplória. Por isso mesmo, esperamos uma grande ação feita por ele, e algo realmente importante é feito, pelo menos no contexto geral da obra: ele morre pela causa de libertar o mundo do mal do Conde Drácula.  Pode ser que esse seja o ato reservado para esse tímido personagem. Embora apareçam pílulas de sua importância: durante o episódio do cemitério, em que vão matar Lucy, já como vampira, a ação dele é a de liderança, obstinado; acredito ser o que mais tem coragem do grupo, até mesmo mais coragem que Van Helsing. Quando estão planejando invadir as casas do Drácula na Inglaterra, pensa ter visto um morcego na janela e atira. Na parte em que Mina está sendo atacada pelo conde Drácula em seu quarto, todos os homens, com exceção de Jonathan, invadem o quarto, e ao perceber a figura do Conde, mostram os crucifixos e rezam; o monstro foge, e enquanto os outros vão ajudar Mina e Jonathan, Morris corre atrás do Drácula. Portanto, percebo que é o que possui mais coragem dentre eles, o que mais está disposto, inclusive morrendo por todos. 
Por fim, tenho a sensação de que o livro foi encerrado de modo abrupto, principalmente no que se refere à capturar o monstro. Não havia nenhuma armadilha, apenas um grupo de szgany, ciganos que recebem esse nome naquela região, protege e forma a comitiva do Conde. Por isso, achei muito prematura morte do Conde Drácula. Tem até certa resistência por parte dos ciganos, mas acredito que poderia ter um embate mais sombrio. A morte de Lucy, como quando vampira foi até mais difícil que a do Drácula; a única dificuldade, no caso do Conde, é o tempo. Este é o vilão no final da obra; não deixar que a comitiva do Conde chegue ao Castelo antes do pôr do sol. Dessa forma, imagino que a obra tenha sido encerrada de forma prematura.


Autor: Elifas Lira