sábado, 6 de junho de 2020

Resenha da obra Farsa da Boa Preguiça, de Ariano Suassuna


                 
                 
(Ariano Suassuna em 1969, retirado do site: https://amulherdopiolho.com.br/1968-1999-2017-3eed50889438)

                  Para adentrar a obra de Ariano deve-se fazer um esforço para entender o que o dramaturgo quis dizer, por isso, sempre recomendo a leitura de suas obras com texto de apoio, de preferência, do próprio autor.
                
                O nível de abstração de Ariano provoca ressignificações nas palavras, e por isso, se não tivemos o cuidado de uma leitura crítica de suas obras podemos cometer o pecado de acusá-lo de preconceito, radicalismo, de ser reacionário, dentre outros epítetos, que podem nos afastar do rico universo mítico do paraibano de Pernambuco.
A obra em questão é a Farsa da Boa Preguiça, peça teatral escrita em 1960 e montada no Recife pelo Teatro Popular do Nordeste, em 24 de janeiro de 1961, no Teatro de Arena do Recife, sob direção de Hermilo Borba Filho.

Esclarecendo o gênero

                Como todos devem imaginar, a maioria das obras de Ariano são peças teatrais. O teatro de Suassuna é baseado nos modelos medievais de teatro, mas que remontam ao teatro greco-romano, a saber, a Farsa e o Auto.

                Enquanto no Auto havia uma preocupação moralizante, sobretudo, com forte apelo dogmático da religião, a Farsa se baseava em tecer críticas à sociedade, caricaturando tipos, e de curta duração. O Auto da Compadecida é um exemplo clássico disso: o momento mais esperado da peça é a aparição da Compadecida no julgamento celestial. A Farsa da Boa Preguiça possui três atos, rompendo com a estrutura original de apenas um ato. É possível observar que ao contrário do Auto da Compadecida, o enredo é focado em denunciar os vícios, a avareza e a preguiça. Embora possamos elencar nos dois subgêneros a preocupação moralizante e o apelo dogmático, o que torna o teatro suassuniano difícil de ser especificado. Outra diferenciação fica pela quantidade de personagens. Na Farsa a quantidade de personagens é bem menor que no Auto. Ariano demonstra em suas obras ter forte influência do teatro de Molière, e mais ainda, de Gil Vicente.

Farsa da Boa Preguiça - enredo

                O enredo da peça se passa em três Atos (como se fossem capítulos da peça teatral). Todos eles baseados no romanceiro do nordeste brasileiro, seja a partir de peças tradicionais do teatro de mamulengos ou histórias tradicionais que circulavam nas camadas populares.

                A obra conta a história de quatro personagens que acabam se entrelaçando. Aderaldo Catacão, rico homem vindo do Recife e que se estabelece no sertão (local em que se passa a história) e que vive para o trabalho. Dinheiro é o seu Deus. Tem atração por Nevinha, mulher do preguiçoso poeta Joaquim Simão, embora, Aderaldo seja casado com Clarabela. Esta vive uma vida de luxo e se julga conhecedora de Arte. Aquela outra, a mercê da sorte, esperando que Joaquim Simão consiga alguma coisa para alimentar a família, não entende nada de Arte e apenas ri dos versos engraçados que o poeta faz.

                No Primeiro Ato, os personagens nos são apresentado pelo trio celeste, Miguel Arcanjo, Manuel Carpinteiro (o Cristo) e Simão Pedro (São Pedro). Enquanto Manuel Carpinteiro apresenta a vida das personagens, ele se comporta como um camelô vendendo produtos. Miguel Arcanjo defende a postura de Aderaldo, mesmo que este cometa pecado, é pior a situação de Joaquim Simão, homem que vive para preguiça. Simão Pedro contesta e afirma que a preguiça de Joaquim Simão é uma preguiça do Bem. É a preguiça criadora, a necessária para os poetas. Manuel Carpinteiro julgará a situação ao final da peça, mas permite que, durante a peça, três demônios criem conflitos para atrapalhar as personagens da obra: A Cancachorra, disfarçada de Andreza, alcoviteira e que vive tentando Nevinha, a esposa de Joaquim Simão a traí-lo com o rico Aderaldo; o Cão Coxo, disfarçado de Fedegoso, homem aproveitador que se disfarça, no primeiro Ato, de Frade, para roubar o cheque com as finanças de Aderaldo, de sua mulher Clarabela. É um dos amantes de Clarabela também, o vaqueiro Fedegoso; e o Cão Caolho, disfarçado de Quebrapedra, que, também no primeiro ato, se disfarça de ajudante de caminhão para roubar o peru que o Frade (Fedegoso disfarçado) havia deixado no momento do roubo do cheque.

                Esse Primeiro Ato é marcado pelo empobrecimento parcial de Aderaldo pelos demônios disfarçados. Clarabela, além de se interessar pelos poemas de Joaquim Simão, também tem interesse pelo próprio Joaquim Simão. Certo fetiche que possui por homens rudes do sertão. Na concepção de Clarabela, os poemas de Joaquim Simão são muito rudimentares e não estão na vanguarda, tão desejada por ela; resta se aproximar dele para realizar sua fantasia. No primeiro Ato temos também a insistência de Nevinha para que o poeta abandone sua preguiça e vá trabalhar. A família não tem o que comer e os folhetos que Joaquim Simão vende não são suficientes. Ele sempre arruma uma desculpa para não ir trabalhar. Seu espaço criador é o banco em frente a sua residência. Quando não tem interesse em prorrogar a conversação sobre o trabalho Joaquim Simão solta seu bordão: Ô mulher, traz meu lençol, que eu estou no banco deitado!

                No Segundo Ato, há uma investida maior de Clarabela em cima do pobre Joaquim Simão, que deixa se levar pela onda, mas logo é descoberto por sua esposa Nevinha. Passamos a ter a interferência direta de Miguel Arcanjo e Simão Pedro na vida das personagens. Mesmo Aderaldo tendo ficado um pouco mais pobre, conseguiu se reorganizar e voltar a crescer economicamente. O mesmo não aconteceu a Joaquim Simão. Poeta preguiçoso, dormidor de banco, não consegue aumentar seus recursos mesmo depois de ter ganhado uma cabra (Andreza disfarçada) de Simão Pedro. Troca a cabra em um peru velho (Por Miguel Arcanjo disfarçado), depois em um galo de briga com carne pisada e dura, depois em um coelho pedrês, e por fim, troca em um pão francês e um conto. São Pedro e São Miguel se descobrem e inicia uma longa discursão sobre a interferência na vida de Joaquim Simão. Manuel Carpinteiro afirma que mesmo os dois o desobedecendo, tudo saiu conforme seus planos. Aderaldo ao saber das inúteis trocas que Joaquim Simão havia feito, propõe uma aposta: se a esposa do poeta concordasse com todas as trocas ele daria todo o dinheiro que tinha no momento, entretanto, se ela achasse as trocas do marido ruins e reclamasse, Aderaldo passaria a ter o conto de réis, o pão francês e Nevinha. Os santos entram e são testemunhas da aposta, ficam com o dinheiro de Aderaldo e o conto de réis e o pão francês de Joaquim Simão. No final, Nevinha que estava de escuta age de acordo para que o poeta seja o ganhador da aposta. Vencendo a aposta, Aderaldo fica desmoralizado, e Joaquim Simão melhora de vida. Há ainda uma observação de Manuel Carpiteiro:

Só tem, agora, um perigo:
Simão vai mudar de vida!
Venceu a miséria, o que é bom,
e é o sonho da pobreza.
Se ficar nisso, vai bem
e já de ganhar a partida!
Mas se deixar-se vencer
pelo espírito da riqueza, 
está com ela perdida.

Finaliza assim o Segundo Ato.

                O Terceiro Ato é marcado pela volta de Joaquim Simão a pobreza. Depois de ter ficado rico, perdeu o juízo e começou a trair a esposa com Clarabela. Foi ficando cada vez mais parecido com Aderaldo. Simão Pedro afirma que foi preciso apertar o poeta, ele perdeu os bichos da Fazenda Homem da Cabra, a seca acabou com o algodão, e os animais que restaram o morreram por cobra ou mourão. Após a pobreza, Joaquim Simão e Nevinha vão até a residência do rico Aderaldo e Clarabela a procura de emprego. Ele passa a ser mordomo dos dois, e o rico Aderaldo vê nisso uma oportunidade de continuar a lhe humilhar e mostrar que venceu a disputa entre os dois. Clarabela passa a ter Fedegoso e Quebrapedra como amantes. Aderaldo continua a enriquecer, mas dessa vez fica mais avarento, não permite que se gaste com nada, nem mesmo com comida, a ponto de dar ordens a Joaquim Simão de que, se aparecesse algum retirante a porta, que o dispensasse logo. O trio celeste aproveita para testar a reação de Aderaldo e de Simão. Um por um, disfarçados de mendigos, vão pedir esmolas na residência de Aderaldo, e todas as vezes são dispensados por Joaquim Simão a pedidos de Aderaldo. O cúmulo da paciência do velho poeta é quando Aderaldo perde um botão de osso do paletó e obriga-o a encontrar. Simão se aborrece e abandona o emprego, é nesse momento que os três diabos se apresentam e mostram como vinham enganado Aderaldo e esposa desde o primeiro Ato. O condenam ao inferno e afirmam que o único jeito para que possam escapar seria se alguém pudesse rezar um Pai-Nosso e uma Ave-Maria, caso contrário, dentro de sete horas, os diabos o levariam.

                Quando já se passavam quase sete horas, Joaquim Simão e Nevinha voltam a casa do rico Aderaldo e começam a chamar por ele. O Fedegoso aparece e ameaça leva-los também, mas o poeta se irrita e inicia uma luta contra o demônio. Quebrapedra inicia também uma ofensiva contra Joaquim Simão e São Pedro decide ajudá-los. Sendo uma luta bem difícil, São Miguel também intervém. Depois do conflito vencido, os demônios fogem e São Pedro explica ao casal o que aconteceu. Para que Aderaldo e Clarabela fossem salvos precisavam que alguém rezasse por eles. Joaquim Simão e Nevinha iniciam a reza, salva os dois condenados e partem como retirantes para outras terras.